Para Mãe Negra (Maria Magda Rodrigues)
Como me livrei do racismo sendo filha de uma família de italianos no interior do Rio Grande do Sul? Este é um questionamento que me fiz várias vezes ao longo dos anos. Tenho a percepção que as crianças não nascem racistas, elas se tornam racistas e o meio social onde são criadas contribui muito para isto.
Quando criança ouvia meu avô paterno Valentin Bresolin afirmar com orgulho: Io sono un povero italiano che venne in Brasile per fare america e il fatto di. (Sou um italiano pobre que veio ao Brasil para fazer fortuna e a fez). Sendo que fazer lá américa, a fortuna tão esperada, para aqueles italianos pobres, poderia ser apenas uma casa confortável com um parreiral produtivo.
Pelo lado italiano da minha família tínhamos pouco contato com negros, que no RS concentravam-se mais na região das charqueadas no extremo sul do País, entretanto, era comum ouvir de meu pai e tios italianos ditados bem depreciativos (para dizer o mínimo) como: “Negro na minha casa nem de barro” ou “negro é tudo igual se não caga na entrada, vai cagar na saída.”
Do lado materno, o racismo se fez presente de outra forma e acho que aí se deu minha redenção. Minha mãe era a irmã mais jovem de uma penca de oito irmãos, criados em uma fazenda na divisa com o Uruguai. Quando casou, junto com os presentes levou uma “irmã de criação”, supostamente, filha de uma empregada da minha avó Amália, com um dos seus oito filhos brancos, comentavam “a boca pequena” que seria filha do meu tio mais velho.
Tia Negra, ou simplesmente Negra como era chamada era uma bela “mulata” – outra expressão pejorativa que na língua espanhola , refere-se ao cruzamento de cavalo com jumento, a mula, logo, filha de branco com negra, virou mulata -, tia Negra era a empregada de minha mãe, embora fossem irmãs, ela nunca foi registrada com o nome paterno.
Quando eu nasci, devido a inexperiência de minha mãe, quem passou a cuidar de mim foi a tia negra, que se tornou minha mãe. As mais cálidas memórias de minha infância veem de seu carinho generoso, de seu colo acolhedor e sorriso contagiante.
Mãe negra fazia a comida em um fogão á lenha comigo pendurada na “ ilharga” (lateral do corpo) e assim fazia todo serviço da casa, á noite, em sua cama eu pegava no sono embalada por cantigas de ninar como a bela canção “Duerme Negrito, de Mercedez Sosa.
Meu brinquedo de infância mais querido foi uma boneca de pano que Mãe negra fez para mim a “Micholeta”, para ela compus este singelo poema: Boneca de pano.
Quando Mãe Negra casou com um castelhano (Sr. Portillo) e foi morar no Uruguai tive a primeira e talvez maior perda de minha vida. Parei de comer, chorava até me finar: parava de respirar e ficava inerte, quase desmaiada. De nada adiantaram minhas birras, mãe negra nunca mais voltou, deixando um vazio jamais preenchido em meu peito infantil.
Por isso, desde minha mais tenra infância, comecei a perceber o racismo e me incomodar com as expressões usadas pelo lado italiano da família: Empregada boa tem quer ser negra das canelas bem finas. Quem nunca ouviu isto? Ao longo da vida fui apresentada a milhares de expressões racistas, a mais comum delas o verbo denegrir: ou seja, “tornar negro” manchar uma reputação limpa. As frases racistas são milhares: mercado negro, magia negra, lista negra e ovelha negra só para citar algumas.
De 1875 a 1914, entre 80 a 100 mil italianos foram introduzidos no Rio Grande do Sul, já a imigração alemã, se manteve constante até 1960. Meus bisavós vieram de Cavaso del Tomba, da região do Vale Vêneto, da província de Treviso.
A política de atrair imigrantes europeus visava ao “branqueamento” da população brasileira, a ocupação de regiões estratégicas do território, o surgimento de uma classe média vinculada à produção de alimentos e abastecimento do mercado interno e a substituição da mão de obra escrava.
Os imigrantes trouxeram suas tradições, costumes, comidas típicas e influenciaram até na arquitetura, mas, também carregaram na bagagem, valores que pregam a supremacia do homem branco, europeu, daí a diferença do tratamento até hoje dispensado por uma sociedade branca, machista e racista ao negro, que aqui chegou como escravo, sem direito nenhum, a sensação ainda hoje é de que existem dois Brasis. Um branco e outro mestiço –A Casa Grande e a Senzala, tão bem descritos por Gilberto Freyre.
Eu, felizmente, fui resgatada desse racismo torpe, que cresce incrustado na pele de crianças descendentes dos imigrantes europeus, pelas mãos carinhosas de Mãe Negra, que ao me proteger das surras e desatenções, sem saber me protegia dos sentimentos de racismo e separação em relação aos negros, que graças a ela, para mim, ao contrário de todos a minha volta, a pele negra significava amor.