MPF novamente denuncia Sebastião Curió por crimes na ditadura militar

O Ministério Público Federal (MPF) ofereceu nova denúncia contra Sebastião Curió, o major do exército brasileiro que comandou a repressão à Guerrilha do Araguaia, no sudeste do Pará, resultando em centenas de camponeses torturados e dezenas de guerrilheiros mortos, cujos corpos jamais foram encontrados. A ação penal é assinada por oito Procuradores da República que integram a Força Tarefa Araguaia e foi apresentada à Justiça Federal em Marabá, tratando do assassinato, tortura e ocultação dos cadáveres de Cilon da Cunha Brum (“Simão”) e Antônio Teodoro de Castro (“Raul”).

Conheça a história de Raul Castro em reportagem produzida pelo TRF1 em parceria com o Conselho da Justiça Federal em 2010 – 1º Lugar categoria Televisão Prêmio Movimento de Justiça e Direitos Humanos/OAB/RS.


Pela terceira vez Sebastião Curió é denunciado por crimes na ditadura militar

Segundo a denúncia, “Sebastião Curió, no início do ano de 1974, no município de Brejo Grande do Araguaia, no Pará, no exercício ilegal das funções que desempenhava no Exército brasileiro, em contexto de ataque generalizado e sistemático – e com pleno conhecimento das circunstâncias deste ataque – contra opositores do regime ditatorial e população civil, matou, em concurso com outros membros das Forças Armadas ainda não totalmente identificados, Cilon da Cunha Brum e Antônio Teodoro de Castro. (…) Em seguida, o denunciado com o auxílio de outros militares, ocultou os cadáveres das vítimas, os quais ainda permanecem ocultos, a fim de apagar os vestígios do crime de homicídio e se manter impune.”

Curió poderá responder pelos crimes de homicídio doloso qualificado e ocultação de cadáver das duas vítimas, já que o crime de tortura, diz o MPF na ação, só foi incluído no Código Penal brasileiro em 1997, décadas após os fatos ocorridos na região conhecida como Bico do Papagaio, divisa entre os estados do Pará, Maranhão e Tocantins. 

O crime de homicídio doloso (com intenção de matar) é considerado qualificado, no caso, porque foi praticado por motivo torpe, com o emprego de tortura e sem possibilidade de defesa das vítimas, que tinham sido capturadas e estavam rendidas, sem oferecer qualquer risco. A pena máxima prevista é de 30 anos de prisão. Pela ocultação dos cadáveres, as penas alcançam 3 anos para cada vítima.

O motivo torpe dos homicídios, de acordo com a denúncia, consistia “na busca pela preservação do poder, mediante violência e uso do aparato estatal, em contexto de ataque generalizado e sistemático contra opositores do Estado ditatorial, para reprimir e eliminar dissidentes contrários ao regime e garantir a impunidade dos autores de crimes de homicídio, sequestro, ocultação de cadáver e outras graves violações de direitos humanos.” A denúncia foi ajuizada em 18 de março.

Justiça de transição
É a terceira vez que Curió é denunciado por crimes cometidos durante a ditadura militar. A primeira ação penal contra ele, relacionada ao desaparecimento/sequestro de cinco vítimas, foi também a primeira da história do país sobre as atrocidades do regime.

Em relação à Guerrilha do Araguaia, esta é a 5ª denúncia ajuizada pelo MPF. No total, as cinco denúncias dizem respeito ao desaparecimento forçado de doze vítimas. Ao todo, no Brasil, 59 agentes de Estado ou pessoas a serviço da União foram apontados como autores de graves violações de direitos humanos cometidas contra 52 pessoas.

O primeiro processo contra Curió trata do sequestro de militantes do Partido Comunista do Brasil (PC do B) no Araguaia e foi recebido pela Justiça em 2012, o que fez com que o militar fosse o primeiro réu do país por crimes da ditadura militar. O caso tramitava em Marabá mas foi trancado por um habeas corpus concedido pelo Tribunal Regional Federal da 1a Região (TRF1) a pedido de Curió. O MPF recorreu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) para anular o trancamento e o recurso aguarda julgamento. (Processo no. 0068063-92.2012.4.01.0000)
Em 20 de março de 2012 o Portal Lei dos Homens publicou reportagem sobre a a luta da família Castro pela punição do Major Curíó.

Crimes imprescritíveis
A discussão jurídica que o MPF trava – sobre a responsabilização por atos criminosos cometidos no regime ditatorial – desde o ano de 2012, quando foi ajuizada a primeira ação penal acusando Sebastião Curió por crimes durante o regime militar, se baseia no direito internacional e na decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) no caso Gomes Lund vs Brasil. De acordo com as leis internacionais, delitos como sequestro, homicídio e ocultação de cadáver não são alcançados pela prescrição ou anistia, porque representam atos de lesa-humanidade e/ou por se enquadrarem como crimes permanentes. 

Para o MPF, os crimes de Curió “foram comprovadamente cometidos no contexto de um ataque sistemático e generalizado contra a população civil brasileira, promovido com o objetivo de assegurar a manutenção do poder usurpado em 1964, por meio da violência”, o que, para o direito penal internacional, já constituíam crimes de lesa-humanidade na época dos fatos, “motivo pelo qual não estão protegidos por regras domésticas de anistia e prescrição”. 

As ações penais relativas à Guerrilha do Araguaia têm por objetivo ainda dar cumprimento à primeira condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em processo movido por familiares das vítimas que foi julgado em 2010. A sentença obriga o país a localizar os corpos dos guerrilheiros e entregá-los às famílias para sepultamento e, também, a investigar os crimes e a responsabilizar/punir os envolvidos. O MPF entende que o cumprimento da sentença e dos tratados internacionais de direitos humanos se sobrepõe à Lei de Anistia.

A guerrilha
A nova ação penal do MPF apresentada contra Curió traz um histórico sobre a Guerrilha do Araguaia e a repressão que se seguiu. Confira trechos:

“Da segunda metade dos anos 1960 a meados de 1972, militantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) deslocaram-se de vários Estados do país e se instalaram nas proximidades do Rio Araguaia a fim de organizar um movimento de resistência armada ao regime militar brasileiro a partir da mobilização da população rural local, episódio histórico que ficou conhecido como ‘Guerrilha do Araguaia’. Conheça essa história em reportagem produzida pelo TRF1 em parceria com o Conselho da Justiça Federal, exibida no Programa Via Legal.




Segundo relatório oficial produzido pela Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP-SDH), o regime militar mobilizou, entre abril de 1972 e janeiro de 1975, um contingente estimado entre três e dez mil homens do Exército, Marinha, Aeronáutica, Polícia Federal e Polícia Militar do Pará, Goiás e Maranhão.

Os dados oficiais, os relatórios produzidos sobre o assunto e as investigações realizadas pelo MPF atestam que a repressão política e militar à Guerrilha do Araguaia foi responsável por quase metade do número total de desaparecidos políticos no Brasil. (…) 

A intitulada “Operação Sucuri”, fundamental para a localização e posterior desaparecimento forçado (sequestro, execução sumária e ocultação de cadáver) dos dissidentes políticos, teve como um de seus comandantes
 em campo o denunciado Sebastião Curió, que afirmou perante a Justiça Federal, em 2015, que chefiou tal Operação e infiltrou 32 agentes disfarçados na região (o próprio denunciado se apresentava, sob codinome, como engenheiro do Incra), que circulavam no cotidiano da população, levantando informações acerca da guerrilha. Segundo o denunciado, quando da Operação subsequente, as Forças Armadas já detinham os dados necessários sobre os guerrilheiros.

Encerrada a Operação Sucuri, foi deflagrada, em 07 de outubro de 1973, a terceira e última campanha de enfrentamento ao movimento dissidente, denominada “Operação Marajoara”, na qual Sebastião Curió teve destacada participação e era o Comandante do Posto Marabá e da Base da Bacaba. Integrava, portanto, a cadeia de comando dos órgãos envolvidos no desaparecimento e morte dos militantes, entre eles as vítimas Cilon Cunha Brum e Antônio Teodoro de Castro, executadas nesta Operação.

Essa última campanha caracterizou-se pelo intenso grau de violência, especialmente por dois aspectos: eliminação definitiva dos militantes, mesmo quando rendidos ou presos com vida; e forte repressão aos moradores locais como forma de obter informações, obstar a ação de supostos apoiadores e fazer cessar o movimento dissidente. (…) Notadamente nos últimos combates, como na Operação Marajoara, na qual Cilon da Cunha Brum e Antônio Teodoro de Castro foram executados, houve um esforço deliberado para a ocultação de cadáveres, ressaltando-se que até a presente data não foram localizados os vestígios mortais das vítimas, mesmo após sucessivas tentativas de buscas patrocinadas pelo Estado – em cumprimento a ordem judicial – por meio do Grupo de Trabalho Tocantins (GTT) e Grupo de Trabalho Araguaia (GTA).”

Processo nº 0000208-86.2019.4.01.3901

Por Assessoria de Comunicação do Ministério Público Federal no Pará