Desde muito cedo na minha família tínhamos o hábito de fazer a faxina de final de ano, ou seja, separar o que não se utilizava mais, em doações para caridade, em material que poderia ser reciclado e o que deveria ir para o lixo mesmo.
Este ano optei por uma faxina diferente. Ao verificar que minha “time-line” no Face book registrava 4 mil 950 amigos. Muitos deles, não tinha a mais vaga ideia de quem eram, mas pela gentileza de não recusar ninguém, foram ficando. A hora da faxina virtual era agora.
Comecei pelos estranhos(a), depois os chatos(a), seguidos pelos reacionários(a) e por último os “galinhas”, aqueles que mal você adiciona, começam a te chamar de querida, te achar linda e enviar figurinhas coloridas desejando, bom dia, boa noite, boa hora – os mais ousados chegam a sugerir encontros – embora em meus álbuns de fotos, eu apareça como uma senhora, ao lado da família, do marido, da netinha. O que passa pela cabeça destes conquistadores virtuais? Será que alguma mulher cai nessa? Vale para todos os gêneros.
Bem, seguindo a faxina, vamos para as mulheres. Temos aquelas senhoras, com roupas de adolescente, com vestidos apertados, amarrados, que fazem lembrar mortadelas, expostas em um balcão frigorífico. Algumas vão mais longe e arriscam fotos sensuais. Pasmem! de biquíni ou shortinho em um macabro desfile de estrias que nem o “photo shop” consegue esconder. Vale tudo para chamar atenção!
Tem também, aquelas gatinhas no melhor estilo “ periguete” ou “beijinho no ombro” . Nada sexys e bem vulgares. Vemos também os machos alfa, na mesma linha. Todos se oferecendo na feira virtual. Muitos com um português sofrível.
Neste garimpar de pessoas factíveis de serem deletadas, me deparei com o post de uma amiga falando de depressão, a profundidade do depoimento, levou-me a seguinte reflexão: Todos são felizes nas redes sociais. Sorrisos, festas, mesas fartas, brindes e viagens internacionais.
Ora bolas, você deve estar pensando….. Ninguém vai aborrecer os outros com problemas. Com unha encravada, com papagaio emudecido, com cano d’água furado. Quem falaria publicamente de suas mazelas? Da sua dor mais oculta, de suas carências?
Do cartão de crédito estourado; da filha que não lava a louça; da mãe ingrata; da amiga dissimulada; da colega inconveniente ou do ano difícil que foi 2019, com tantas perdas: materiais e emocionais.
Mas não, são todos felizes e seus posts. Estão lá, eternizados na “nuvem” todos sorrindo no brinde natalino, amando e sendo amados. Pelo menos é assim que querem ser vistos.
Os anos em que fiz terapia pelo processo “Pathwork”, de Eva Pierrakos, descobri o significado da expressão “autoimagem idealizada” – que é a máscara que usamos para sermos aceitos pelo outro- o equivalente ao conceito da persona, de Carl Jung.
Pois bem, nas redes sociais somos o tempo todo “máscaras”, queremos ser amados, aplaudidos, vistos como bem sucedidos, eternamente jovens e muitoooo felizes.
A tristeza? Oque foi feito dela? A mágoa foi jogada para debaixo do tapete, a raiva foi momentaneamente esquecida. O importante é parecer bem na foto.
Essa faxina virtual me fez lembrar o “Poema em Linha Reta” de Fernando Pessoa (que reproduzo abaixo) e me identifiquei profundamente com o poeta português, com meus amigos bem-sucedidos, brilhantes, campeões em tudo e eu ali tantas vezes triste, inconformada, impaciente, e até, porque não? Ridícula em algumas situações.
Todos, príncipes e princesas, na vida. Na profundidade nesta reflexão. Com raiva de tanta falsidade, exclui todos os falsos amigos virtuais.
Quero menos máscaras e sorrisos plastificados, mais sentimentos e pessoas verdadeiras, mais abraços reais, mais vida e verdade, dentro e fora das redes sociais.
Poema em linha reta
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.